“Se não formos genuínos
Somos uma fraude”
Beste lezers,
Met veel plezier, presenteer ik u (het origineel) van het interview van Pedro Emanuel Pereira, een van de prominentste Portugese pianisten en componisten van zijn generatie, gegeven aan een van de meest vooraanstaande Portugese journalisten en schrijvers, Valdemar Cruz.
De fotografie is van Ana Mar en het interview heeft in de mooie ‘Florbela Patisserie – Torel Palace Hotel’ in Porto plaatsgevonden.
De vertaling in het Nederlands is van Hennie Bos, de vertrouwde vertaalster van de teksten van de muzikanten voor Q.Art Magazine+Events, en die kunt u in Maxazine lezen: https://www.maxazine.nl/2024/03/16/pedro-emanuel-pereira-over-moderne-klassieke-muziek/. Hier treft u dezelfde inhoud in een andere vorm gegoten, in een format dat Maxazine eigen is. Mijn dankbaarheid aan Norman van Wildenberg de journalist en manager van Maxazine (onze Mediapartner), voor diens publicatie, is ook groot!
Later zal hij/ zijn team het interview ook in het Spaans en in het Frans gaan vertalen. Die vertalingen zullen in de ‘.com’, internationale versie van Maxazine komen te staan.
Behalve om mijn dankbaarheid aan alle betrokkenen bij dit interview hier publiekelijk te uiten, schrijf ik deze introductie óók om u te waarschuwen voor de gevaren van de vertaalmachine op onze site. Hij is wel handig om een korte tekst op de agenda te vertalen, maar ja… wat zal ik ervan zeggen??
Een ding is zeker, ik kan u niet laten denken dat zowel Valdemar Cruz als Pedro Emanuel Pereira de Portugese taal niet subliem beheersen.
Ik wens u veel plezier met het lezen! Hier in het Portugees en in Maxazine in de vertaalde versies!
In dankbaarheid,
Teresa Pinto
Portugese versie
Queridos leitores,
É com enorme prazer que vos apresento a entrevista de Pedro Emanuel Pereira, um dos mais proeminentes pianistas e compositores portugueses da sua geração, dada a um dos mais destacados jornalistas e escritores portugueses, Valdemar Cruz.
A fotografia é de Ana Mar e a entrevista teve lugar na bonita “Florbela Patisserie – Torel Palace Hotel” no Porto”
A tradução para holandês é de Hennie Bos, a tradutora dos textos dos músicos para a Q.Art Magazine+Events, e pode lê-la na Maxazine: https://www.maxazine.nl/2024/03/16/pedro-emanuel-pereira-over-moderne-klassieke-muziek/. Aqui encontrará o mesmo conteúdo num formato diferente, um formato
próprio da Maxazine. A minha gratidão a Norman van Wildenberg, jornalista e manager da Maxazine (o nosso parceiro de mídia), também é enorme!
Mais tarde a equipe de Van Wildenberg irá traduzir a entrevista também para espanhol e francês. As traduções serão editadas no ‘.com’, versão internacional da Maxazine.
Para além de querer expressar aqui publicamente a minha gratidão a todas as pessoas envolvidas nesta entrevista, escrevo esta introdução também para vos alertar sobre os perigos da máquina tradutora no nosso site. É muito útil para traduzir pequenos textos na agenda, mas… o que posso dizer sobre ela?
Uma coisa é certa, não posso deixar que pensem que tanto Valdemar Cruz como Pedro Emanuel Pereira não têm um domínio sublime da língua portuguesa.
Muito prazer na leitura! Aqui em português e na Maxazine nas versões traduzidas!
Com gratidão,
Teresa Pinto
“Se não formos genuínos
Somos uma fraude”
Há uma pulsão discursiva em Pedro Emanuel. Apetecem-lhe as palavras. Apetece-lhe a reflexão intensa, como suporte dedutivo da construção de frases, sejam ou não musicais. Percebe-se no jovem pianista a vontade de romper fronteiras. O desejo de contrariar a norma estabelecida. Anseia construir uma linguagem nova, seja no modo como compõe, seja na voragem posta na interpretação de cada uma das obras do seu reportório, construído ou em construção, seja na ousadia contida no modo como se expressa. Sabe estar a protagonizar um discurso nem sempre alinhado com o cânone do pensamento. Conhece os perigos inerentes a uma aposta de risco. Essa é, porém, a sua essência. Essa é a sua forma de ser genuíno. E, como afirma num momento crucial desta entrevista, quem não é genuíno, não passa de uma fraude.
Há um sentido de verdade nas suas composições musicais, bem como na sua atitude enquanto intérprete. Porventura será uma herança do caráter atribuído à região onde nasceu: a cidade de Guimarães, naquele Minho do Norte de Portugal, onde se diz ter sido fundado Portugal há quase 900 anos.
Aos 34 anos, Pedro Emanuel é um dos mais proeminentes pianistas e compositores portugueses da sua geração. Graduado pelo Conservatório Tchaikovsky de Moscovo, na classe da pianista Vera Gornostaeva, com pós-graduação (concluída com nota máxima e distinção Cum Laude) no conservatório de Amesterdão na classe do pianista Naum Grubert, começou a sua formação superior em piano no Conservatório da sua cidade natal, na classe do pianista Marian Pivka. Estudou ainda orquestração e instrumentação com Mikhail Bogdanov e Artun Hoinic.
Premiado em mais de vinte competições internacionais, Pedro Emanuel está agora envolvido num doutoramento em Criação Artística na Universidade de Aveiro.
No âmbito do seu trabalho enquanto compositor, destaque, entre outras obras, para a encomenda de um concerto para clarinete e orquestra, a estrear no Cabrillo Festival of Contemporary Music, nos EUA.
No contexto das comemorações dos 50 anos da revolução que restabeleceu a democracia em Portugal no dia 25 de Abril de 1974, criou um projeto que será apresentado em dez estabelecimentos prisionais de Portugal, intitulado “50’25 – Pelas Prisões de Portugal”. Serão interpretadas 10 obras originais, inspiradas em textos poéticos escritos por reclusos de cada estabelecimento profissional.
A sua discografia inclui os álbuns “Russian Works”, “Sounds of my homeland”, com trabalhos originais da sua autoria para piano solo, e “XX-XXI”, gravado com o clarinetista Carlos Ferreira.
Num sábado ao final da manhã, num espaço do centro histórico do Porto, Pedro Emanuel Pereira abriu-nos as portas do seu mundo.
Como é gerir a vida pessoal e profissional nesta fase da carreira?
Uma está ligada à outra. Não é possível separar, ou eu, pelo menos, não consigo separar. Acredito que quem trabalhe noutras áreas, consiga desligar ao chegar a casa. Eu, como trabalho na minha própria casa, uma vez que é lá que componho, que estudo, que crio, de certa forma não consigo abstrair-me. A minha casa é o meu local de trabalho. Há aqui um lado pecaminoso. Muitas vezes dou comigo a trabalhar após o jantar. É quase todos os dias. É difícil separarmos a nossa profissão da sua essência. Um artista que genuinamente pratica a sua arte, vive de mãos dadas com o seu quotidiano e a sua arte. A arte é como se fizesse parte da casa.
Como gere o problema das digressões?
Nesta fase tem sido natural, uma vez que ainda não tenho filhos. No próximo ano terei uma agenda bastante preenchida. Terei uma tournée com Carlos Ferreira, que é o clarinetista principal da Orquestra Nacional de França. Vamos fazer o circuito “Rising Star” de 2024, pelas principais salas europeias, como, entre outras, o Barbican Centre em Londres, a Philarmonie en Paris, Elbphilarmonie e Laiszhalle em Hamburgo, Palau de la Musica Catala em Barcelona, Concertgebouw em Amesterdão e Musikverein em Viena. São perto de 20 concertos.
Como nasceu essa cumplicidade artística?
A história é curiosa, porque sempre ouvimos falar um do outro, mas não nos conhecíamos até nos cruzarmos em Amesterdão, no Conservatório. O Carlos estudou lá dois anos, que coincidiram com os dois anos que lá estive. Ele era academista do Concertgebouw e tudo começou de uma forma muito natural. O Carlos apareceu num concerto meu, depois convidei-o para fazermos os dois um concerto em Guimarães, e a partir daí tornámo-nos grandes amigos e temos tocado juntos em vários locais.
Há uma completa identificação entre os dois, do ponto de vista musical?
Se há pessoa com quem me dá prazer tocar, é com o Carlos. Não é necessário muito diálogo. Conseguimos dialogar através da música, através dos sons. O Carlos é alguém com quem é muito fácil trabalhar. Em palco, fazendo música, somos mais felizes. Complementamo-nos.
Isso não é muito comum…
Acontece na minha profissão, quando temos de fazer música de câmara, música sinfónica, muitas vezes as relações são impessoais. Não tenho de ser amigo dos maestros, ou dos colegas com quem toco. Temos de ter uma relação cordial e cooperar em palco. Mas a partir do momento em que estamos em palco com quem nos revemos nos valores, na ética, na forma de ver o mundo, tudo muda. Aí acontecem verdadeiros milagres.
E quando não há grande química entre os dois artistas?
Isso acontece muitas vezes. Por exemplo: pegar num grande pianista e num grande cantor com carreira internacional, e junta-los. Nem sempre funciona, porque estamos a falar de dois egos, de dois gigantes, e nem sempre vemos a melhor fusão. Para que isso suceda, tem de haver cedência dos dois lados. Tem de haver espaço para o respeito, no sentido de deixar criar espaço para que o outro brilhe, para que crie o seu próprio momento. É preciso uma certa humildade para se poder fazer música em conjunto.
Nesse tipo de parcerias levanta-se uma outra questão crucial, que é a identificação estética, ou até programática. O que é que vos aproxima do ponto de vista da estética musical?
O Carlos tem uma escola diferente da minha. Fiz o meu percurso seguindo a escola russa. Vivi em Moscovo seis anos e meio, e mesmo antes de ir para Moscovo sempre tive muitos professores oriundos dessa escola. O Carlos vem da escola francesa, que tem características distintas da escola russa.
Sei que esta pergunta daria uma tese, mas, de forma sucinta, quais são os traços mais marcantes de cada uma das escolas?
Isso é muito difícil, porque mesmo dentro das escolas existem subdivisões. Há muita gente que discorda desta filosofia das escolas. Grigory Sokolov, por exemplo, diz que é uma abominação falar do fenómeno da escola russa. Para ele existe a individualidade, o artista enquanto indivíduo. Mas é difícil não caracterizarmos coletivamente uma escola que tem tido…
Sempre vivi com esses conceitos…
Sim, porque são formas de simplificar. Diria que a escola russa dá muita primazia ao profissionalismo. Isto de uma forma muito básica. Alguém que termine o conservatório de Moscovo, na teoria será um excelente técnico. Será um mestre no rigor técnico, no domínio do instrumento. Daí a ser criativo, a ser genuinamente artista, é um passo muito grande. Tem de haver talento. Essa é uma das áreas de especialização da minha esposa. O talento é inato? É adquirido?
Essa é uma grande discussão…
Obviamente. Mas focando-me na escola russa, funciona por meritocracia. Basicamente chega ao topo da pirâmide quem conseguiu subsistir e quem foi mais forte. A questão que se coloca é a de saber onde está a lacuna da escola russa. O que acontece com todos aqueles que caem? Conheci muita gente que não conseguiu, sequer, entrar no Conservatório de Moscovo. Para os russos, entrar no conservatório é um enormíssimo esforço. Ficam anos a trabalhar para aquele concurso. Tenho esta inquietação dentro de mim. O que é feito dessas pessoas? Onde há espaço para elas no mundo criativo? Às vezes há erros. Nem sempre o júri acerta quando faz a sua pré-seleção. A minha professora, Vera Gornostaeva, não chegou a fazer o curso superior no Conservatório de Moscovo, mas fez uma brilhante carreira, foi finalista do concurso Tchaikovsky. Às vezes é também o momento. Com os nervos, a pessoa pode não ter a melhor performance.
E a escola francesa?
Trabalha muito a questão do som, as nuances tímbricas. É uma escola muito refinada. Basta olhar os seus compositores. Quando pensamos na escola francesa surge-nos logo o nome de Couperin (François Couperin, 1668-1773), de Debussy (Claude Debussy, 1862-1918), Ravel (Maurice ravel, 1875-1937). Mais recentemente temos o caso de Messian (Olivier Messian, 1908-1992). É uma cultura com um certo requinte, e não apenas na música. Na Rússia temos um sentido de grandiloquência. Há este lado humanista, mas também há o lado grandioso. Sente-se para quem lá vive. É um país gigante. A sensação temporal, na Rússia, é completamente diferente.
Após esta deambulação por alguns aspetos das escolas russa e francesa, regressemos à digressão com Carlos Ferreira. O que vai caracterizar o programa. São composições próprias?
Tenho de começar por dizer que lançámos recentemente o disco “XX-XXI”. O Carlos já tem uma carreira muito interessante, com prémios internacionais. Foi nomeado artista “Rising Star” de 2024. No âmbito dessa nomeação fazemos esta digressão por várias cidades europeias. O reportório é muito vasto. Vamos incluir o que fazemos melhor. Temos música do século XX, com Poulanc, Bernstein, Martineua, Horowitz, temos também as sonatas de Brahms. E algo que achei muito carinhoso da parte do Carlos, que é ter no programa uma suite que compus e que lhe é dedicada, intitulada “Suite Duas Igrejas”. Esta peça estará em todos os concertos, independentemente do programa de cada sala, que diferirá conforme as situações. No ano em que estamos a celebrar 50 anos da nossa democracia, 100 anos do nascimento de Joly Braga Santos, 500 anos de Camões, é hora e mais do que hora de podermos exportar a nossa música. Na área da música clássica, sinto, da parte dos próprios artistas, da comunicação social, de quem gere as salas de concertos, uma espécie de complexo de inferioridade.
Esse é um dos grandes problemas dos compositores portugueses contemporâneos, no sentido em que compõem uma obra, eventualmente terá uma interpretação pública, mas depois desaparece?
Esse é um problema muito real. Já está melhor. Isso tem um contexto. Se olharmos para compositores como Fernando Lopes-Graça, vemos que uma parte muito significativa da sua obra não foi tocada em vida do compositor. Por um motivo muito simples: não tínhamos a quantidade de músicos e intérpretes que temos hoje. Não tínhamos a quantidade de escolas que temos agora. Desse ponto de vista, a nossa situação está mais facilitada. O paradoxo disto tudo é que, não obstante termos esta situação diferente, se excetuarmos a Fundação Calouste Gulbenkian, o Centro Cultural de Belém, a Casa da Música, uma ou outra sala de espetáculos, como a Academia de Música de Espinho, que é uma exceção à regra, se formos para as cidades periféricas, não consigo encontrar muitos exemplos de salas que tenham uma programação regular na área da música clássica. Fica muito difícil para os compositores contemporâneos termos um espaço onde as nossas obras possam ser tocadas. Felizmente este ano temos o ano Portugal na Casa da Música. Estão a dar muitas oportunidades aos intérpretes e compositores portugueses. Mas isto devia ser uma regra. Demorou muito tempo. Uns vinte anos…
Há uma grande diferença face à situação vivida na generalidade dos países europeus?
A diferença é abissal. Se vamos à Alemanha, a França, todos os anos eles incentivam a música do seu país. Todos os anos. Devíamos, em Portugal, mudar o paradigma de que a música portuguesa, para ser aceite em Portugal, tem de ter, primeiro, uma validação algures noutro país europeu. É uma mentalidade um bocado periférica, possivelmente por termos vivido tantos anos em ditadura. (Nota: entre 1928 e 1974 Portugal viveu sob o regime ditatorial de cariz fascizante de Oliveira Salazar e Marcelo Caetano. A democracia foi conquistada com a chamada Revolução dos Cravos, a 25 de Abril de 1974). Há essa frustração de, durante muitos anos, termos vivido com um analfabetismo crónico. Ignorância crónica perante o desconhecido. Isto deixa marcas. Mas sou otimista. Sinto que as futuras gerações vão olhar para o artista português, para a música portuguesa, como sendo uma marca que merece ter lugar na nossa sociedade e merece ser exportada, e não importada.
Referiu o Ano de Portugal na Casa da Música. Vai ter uma participação especial com a interpretação de um concerto de Prokofiev não muito comum nos programas das salas de concertos. Foi uma escolha pessoal? Porquê Prokofiev?
Foi uma decisão de Rui Pereira, programador da Casa da Música. Decidiu que queria nesta temporada fazer os cinco concertos de Prokofiev e que fossem tocados por cinco intérpretes portugueses. Descobri que ia fazer o concerto de abertura da nova temporada uma semana antes do concerto. Rui Pereira deu-me total abertura para escolher um dos cinco concertos. Optei pelo 5º Concerto por dois motivos. O primeiro é por se tratar de um concerto que não tinha no meu reportório. Já toquei o 1º Concerto, o 3º Concerto. E era um Concerto que eu queria muito fazer. O segundo motivo prende-se com o facto de ser um concerto que, geralmente, as orquestras não têm no reportório.
Há uma explicação?
A verdade é que, mesmo na música clássica há os chamados “hits”. E este Concerto não faz parte dos “hits”. As pessoas preferem o 3º Concerto, o 1º. O segundo, embora seja muito difícil, muito complexo de tocar, também é bastante tocado. O 4º e o 5º são colocados mais na gaveta. Principalmente o 5º Concerto, porque é muito complexo. Tem uma orquestração já muito ousada. Diria que já está projetado naquilo que é o modernismo europeu. Mas isso é algo factual. Todas as orquestras têm no reportório o 1º Concerto de Tchaikovsky, algumas fazem o 2º. É raríssimo fazerem o 3º, que é um concerto inacabado. Acontece o mesmo com Rachmaninov. Todas as orquestras têm o 2º e o 3º. É raríssimo fazerem o 4º Concerto. Algumas fazem o 1º.
Isso tem a ver com o que o público pede?
Sim. De facto, é muito mais vistoso ouvir um 3º Concerto de Prokofiev do que um 5º Concerto. A minha professora dizia algo que é uma verdade: a música genial nunca cansa.
Mas qual é, então, o lugar ou o espaço para a descoberta?
Há um certo comodismo. Obviamente há um comodismo das orquestras, dos programadores, mas os pianistas e os intérpretes também têm uma responsabilidade muito grande. Se olharmos para as competições internacionais de piano, são sempre as mesmas obras a serem interpretadas. Se olharmos para os grandes vencedores das competições internacionais vemos que, tirando o concurso Tchaikovsky, onde nos últimos anos muita gente opta pelo 2º Concerto de Tchaikovsky, o que aparece sempre é o 1º Concerto de Tchaikovsky, ou o 3º Concerto de Rachmaninov. Alguns fazem concertos de Brahms, bem como os 5º ou 4º Concerto de Beethoven. São sempre as peças canónicas. É muito difícil alguém ter a ousadia de fazer o que fez András Schiff, quando vai para o Concurso Tchaikovsky e toca um concerto de Bach. Ou fazer o que fez Van Cliburn (Harvey Lavan Cliburn Jr, 1934-2013), que vai à primeira edição do Concurso Internacional Tchaikovsky (em 1958), e apresenta o Concerto No. 3 de Rachmaninov, quando toda a gente tocava o 2º. De alguma forma foi ele que desengavetou o 3º Concerto de Rachmaninov. Ou o que fez Grigory Sokolof, que vai à final do Concurso e leva o 2º Concerto de Saint-Sains. Acredito que é preciso alguma ousadia por parte dos intérpretes para quebrar certos paradigmas e certos cânones que são implementados no reportório. Ao optar pelo 5º Concerto de Prokofiev também quis transmitir um pouco essa mensagem. Este concerto é tão genial, que é digno de abrir a nova temporada da Casa da Música.
É uma opção de risco, da sua parte…
Obviamente. Para quem não o conhece, o 5º Concerto, quando acaba, a primeira reação do público é perguntar-se se já acabou. As pessoas não estão à espera daquele final. Esperam um final apoteótico que vem do Romantismo, do pós-Romantismo, com aquelas frases gigantes, que ouvimos nos concertos de Rachmaninov, ou no 3º de Prokofiev. A verdade é que neste concerto, essa frase gigante não existe. Este concerto está criado em pequenas frases, em pequenos motivos. É preciso que estejamos muito atentos, porque o concerto tem muita informação contida. E termina de uma forma abrupta. Um pouco na linha de Hindemith (Paul Hindemith, 1895-1963). Isto é polémico, vão dizer que não é possível comparar Hindemith com Prokofiev. Entendo isso. Mas Prokofiev anda ali a navegar em mares muito próximos, a romper a tonalidade, e no final de cada andamento saca-nos um acorde límpido e diz-nos que a tonalidade é aquela. Isto faz-nos lembrar as sonatas de Hindemith. Navega por mares muito tumultuosos e termina sempre com uma harmonia límpida. Chegamos ao final e temos aquele acorde brilhante de sol maior, e para as pessoas é um choque. O público inquieta-se. Pergunta-se se acaba assim. Foi isso que quis. Provocar uma certa inquietação nas pessoas, de forma a entenderem que a arte vai muito para além de dados adquiridos. Caso contrário, ainda hoje estaríamos a ouvir as sonatas de Schubert.
Como é o seu processo de aprendizagem de uma obra nova que não faça parte do seu reportório?
Nos últimos anos tenho-me dedicado a aprender obras que não são canónicas e algumas até são bastante desconhecidas. Neste aspeto tive o privilégio de, quando me mudei dos Países Baixos para Portugal – vivi mais dez anos fora – no início da pandemia, conheci o professor Miguel Leite, um entusiasta da música portuguesa, grande amigo de muitos poetas contemporâneos. Trabalha em muitos projetos com António Vitorino de Almeida e outros artistas. Introduziu-me a um tipo de reportório português que eu desconhecia. Outros colegas meus, pianistas também, não as conheciam. Contactei com uma série de obras de Eurico Tomás de Lima, interpretadas pela primeira vez na Grécia, num festival em Salónica. Uma das obras chama-se “Ilha do Paraíso”, foi composta pelo Eurico Tomás de Lima na ilha da Madeira enquanto viveu lá. A verdade é que ele tocou-a na Madeira, depois no Ateneu Comercial do Porto e, a seguir, durante 40 ou 50 anos, nunca mais ninguém pegou naquela partitura. Eu não sabia como é que o público ia reagir, mas a reação foi magnífica. Pergunto-me: porquê tanto tempo de silêncio? Porquê tantos anos? Eu próprio desconhecia a obra de Eurico Tomás de Lima. Então, decidi ser minha função, enquanto artista português, divulgar estas obras, que não são conhecidas, sequer do meio musical português.
Sobre o processo de aprendizagem, tudo no início é uma incógnita.
Interessa-lhe perceber o contexto em que nasce uma obra? O contexto do compositor naquele período de composição?
O que é primordial, para mim, é que a primeira mensagem que o compositor me quer transmitir é a partitura. É por aí que tenho de me guiar. Toda a biografia do autor, o contexto histórico da obra não é primordial. Primordial é o que está escrito na partitura. Os segredos mais importantes estão contidos na partitura. Descobrimos a essência criativa do compositor, o seu ego, as suas fragilidades, descobrimos isso na sua própria arte. Acredito que a música tem a capacidade de transmitir a essência da pessoa humana. Toda a biografia vem apenas de certa forma corroborar o que está escrito na partitura. Acredito que os grandes compositores e os grandes artistas dificilmente conseguiriam dissociar aquilo que é a sua arte do que é a sua essência. É muito difícil não sermos nós próprios na nossa arte. A não ser que sejamos uma fraude. Olhando para os grandes compositores, vejo os seus amores, as suas angústias, as suas tristezas, as suas lágrimas, os seus sucessos, em cada nota da partitura.
Como é o seu dia a dia na preparação de um concerto?
Peguei no exemplo do Eurico Tomás de Lima por ser um compositor cuja obra eu desconhecia. Tem um tipo de estética com a qual já estava de alguma forma familiarizado. Mas posso dar o exemplo de António Vitorino de Almeida. Aprendi os “Três prelúdios e fuga”, que ele compôs e fiz a estreia mundial de dois deles em Moscovo, com Vitorino d’Almeida presente. Quando comecei a estudar a obra, tenho de reconhecer que dei comigo a dizer que não percebi nada. Não percebia o que ali estava escrito. Era tudo muito estranho. Disse isto ao maestro. Disse-lhe que não percebia a estética dele. O maestro ria-se e só me dizia para eu não desistir. Na verdade, se tivesse desistido numa fase inicial, teria perdido esta maravilhosa oportunidade de contemplar e admirar uma obra onde vejo agora algo que quem não passou por aquele processo de aprendizagem não consegue ver. A música de António Vitorino d’Almeida tem esta exigência que leva a que, no final, a admiremos.
O Pedro, para lá de concertista, está a explorar a componente de composição. Tem, inclusive, uma obra intitulada “A Passarola”. Quer explicar esse trabalho?
Sim, “A Passarola” foi uma obra que criei juntamente com dois colegas, o Rui Gato e o Vítor Joaquim. É uma obra para piano, música eletrónica e geometria sagrada.
O que é a geometria sagrada?
O especialista em geometria sagrada é o Rui Gato. No entanto, trata-se de pegar em intervalos musicais e colocá-los em figuras geométricas. Isto de uma forma muito rudimentar. Juntámo-nos os três a convite de Guta Moura Guedes, da Experimenta Design. Pegando numa sonata de Scarlati, trouxemos esta obra para a contemporaneidade. Há muita improvisação nesta música, mas também há muita complexidade. Foi dos projetos que mais prazer me deu.
Como é a convivência entre o intérprete e o compositor, e de que forma um condiciona o outro?
Gostei da palavra que usou. Tem a ver com condicionamento. Ele acontece efetivamente. É muito difícil conciliar no dia a dia estas duas vertentes. Por outro lado, complementam-se. Sei que sou melhor compositor por ser intérprete, por ser pianista. E o facto de ser compositor ajuda-me muito a ser intérprete. Tenho outra visão sobre a composição. Coloco-me no lugar do compositor. Porém, no dia a dia, é uma grande inquietação. Revejo-me muito na inquietação de Rachmaninov. Ele tinha muita dificuldade em ser pianista, compositor e maestro. Primeiro era exímio nas três facetas. No entanto, não conseguia manter a regularidade assumindo as três facetas ao mesmo tempo. Mahler dirigia a sua temporada de orquestra, e no Verão é que se dedicava à composição. No meu caso, é muito difícil conciliar as duas áreas no dia a dia. Neste momento consigo ser mais organizado, mas confesso que os períodos em que sou mais produtivo são os períodos em que me desligo de uma das duas. Mas é difícil, porque nem sempre a agenda o permite.
Está a fazer um doutoramento em criação artística na Universidade de Aveiro. Qual é o seu objetivo?
O meu foco está na questão do silêncio enquanto presença, no tempo e no espaço. Através da criação artística procurarei demonstrar a importância do silêncio enquanto presença, e não ausência. O silêncio como presença de algo, dentro de uma dimensão temporal e espacial. Este programa doutoral é relativamente recente. No início inscrevi-me um pouco cético, mas a realidade é que estou tremendamente satisfeito. É um programa onde estão colegas de várias áreas, da arquitetura ao cinema, artes plásticas e outros. Esta simbiose permitiu-me ver a arte, ver o mundo, de uma forma totalmente distinta. Não sei qual vai ser a utilidade do diploma, mas não é isso que importa. O que vale é a experiência que está a ser vivida.
Como é que um jovem de 17 ou 18 anos vai sozinho para Moscovo, com todas as dificuldades de língua, diferenças culturais e climáticas, e consegue adaptar-se e concluir um curso tão exigente como o do Conservatório de Moscovo?
Sendo sucinto, diria que na minha vida, desde jovem, nunca escolhi o caminho fácil. Sempre escolhi o que entendia ser o caminho certo. Nem sempre acertei. Falhei muitas vezes. Quando fui para a Rússia, sabia que seria um caminho difícil. Não houve pressão, nem dos meus pais, nem do professor. Pelo contrário, a minha mãe gostaria que eu ficasse em Portugal. No entanto foi uma decisão tomada em consciência. Enquanto estive no Conservatório de Moscovo aconteceram imensas situações desafiantes que, por momentos, me fizeram refletir, ao ponto de pensar se seria que devia sair, se devia desistir. Repare que, no curso preparatório éramos mais de 30 alunos de todo o mundo. No final dos seis anos, obtivemos o diploma, apenas sete alunos. Voltamos ao início da nossa conversa. O sistema russo de ensino é hierárquico. É um sistema de meritocracia. Só chega ao fim quem está verdadeiramente preparado. É muito fácil, lá, ao fim de um ou dois anos, as pessoas abandonarem. É muito duro chegar ao fim. É muito difícil entrar, mas mais difícil ainda é sair. Na generalidade dos países europeus estamos habituados a que, a partir do momento em que alguém entra num curso superior, é quase certo que o vai concluir. Pode demorar mais, ou menos, mas, se quiser, vai terminar o curso. No Conservatório de Moscovo não é garantido. Basta facilitarmos um pouco, vacilarmos numa ou outra situação e, quando nos apercebemos, estamos fora da instituição. Eu tinha 17 anos quando fui para lá. À parte algumas saídas para “master classes”, nunca tinha estado fora de casa. Ali, fiquei entregue a mim próprio, a viver num quarto minúsculo com várias pessoas, pelo menos no início. Depois a questão do clima, a língua. O problema dos contactos, uma vez que os russos, quando são amigos, são mesmo muito amigos, mas numa fase inicial é difícil abrirem-se. No início foi muito duro.
Vamos terminar com a sua deslocação aos Países Baixos para participar no Q.Art Festival. Não é a primeira vez que o faz. Que memórias tem do festival?
Na verdade não é a primeira vez que trabalho com a Teresa Pinto, organizadora do Festival. Entrei na programação da edição de 2020 com o concerto “Sons da Minha Terra” que iria ter lugar a 25 de Abril na Engelse Kerk em Amesterdão. O concerto foi cancelado devido à pandemia do Covid. Mas tocarei lá este ano.
O ano passado tivemos um concerto também em Amesterdão, também organizado pela Q.Art, desta vez na Amstelkerk. Toquei com o violinista Eliot Lawson, um grande violinista. Dá aulas no Conservatório de Amesterdão e Antuérpia e na Universidade do Minho. Estreámos uma peça que eu compus para piano e violino, dedicada à minha esposa, que também é violinista. Cama-se “Ar de Mar”. São sete quadros para piano e violino. Segundo a minha esposa, esses sete quadros são representativos da própria criação. A verdade é que quando comecei a analisar cada um deles, percebi que aquela imagem dela, metafórica, fazia todo o sentido. Acontece muitas vezes a compositores e criativos, fazermos algo, e vir depois alguém de fora com uma visão, uma leitura, que nos deslumbra. Temos de ser humildes para reconhecer que a arte surge de nós, mas não é nossa. A partir do momento que não é nossa, o objeto artístico deixa de nos pertencer.
Mas o Q.Festival é um festival muito importante. Permite levar um pouco da cultura portuguesa aos Países Baixos. A Teresa Pinto tem feito um trabalho muito nobre, no sentido em que tem procurado levar artistas que fazem algum tipo de arte, de criação, que está de certa forma relacionado com a sua essência, o país onde nascemos, mas nem sempre são conhecidos do grande público.
É fácil, hoje em dia, organizar um concerto de fado em qualquer lado do mundo. Neste momento o fado é património mundial. É mais difícil exportar música contemporânea portuguesa, bem como os nossos poetas. A Teresa tem tido esta sensibilidade. Sabe que, por um lado, para ter aceitação do público, tem de ter Saramago e o fado, mas não se restringe a isso. Então, convida artistas que conseguem levar a cultura portuguesa aos Países Baixos, sabendo que é uma incógnita como será a aceitação do público. Há aqui um trabalho em prol da arte e da cultura. Foge do lado mercantil do negócio. Dou publicamente os parabéns à Teresa Pinto por ter a coragem de, independentemente do retorno que tem, ou que não tem, manter este trabalho nobre de divulgar a arte e a cultura portuguesa.